A mulher de Jó mandou mesmo que ele amaldiçoasse a Deus?

Tempo de leitura: 8 minutos

Se existe uma figura icônica do sofrimento na Bíblia esta é Jó. É importante fazer uma distinção entre o tempo em que Jó viveu e o tempo quando o livro de Jó foi escrito.
Jó aparentemente deve ter vivido durante o tempo dos patriarcas, possivelmente próximo à época de Abraão. O livro de Jó é considerado o livro mais antigo da Bíblia.
É possível chegar a esta conclusão pelas seguintes informações:
• Não se observa no livro referências alusivas à lei de Moisés, bem como suas instituições. Esta condição poderia ser considerada incomum se Jó realmente vivesse em um tempo pós Moisés.
• Jó aparece apresentando sacrifícios em favor de sua família, uma atividade pertinente aos patriarcas, quando o sacerdócio ainda não havia sido estabelecido, análogo aos que eram praticados sob a égide da Lei.
• A longevidade de Jó está em concordância ao tempo dos Patriarcas.
Segundo alguns estudiosos Jó deve ter vivido em uma época anterior ao pai Abraão, algo entre os séculos XXV a XXIII a.C. Ele tinha provavelmente 200 anos quando faleceu.
“Depois de todos esses eventos, Jó ainda viveu 140 anos; viu seus filhos e os descendentes deles até a quarta geração. E então morreu Jó, realizado e em idade muito avançada.” (Jó 42:16-17)
Jó foi provado em quatro aspectos:
• Quando perdeu seus bens, seus empregados e seus filhos;
• Quando perdeu sua saúde;
• Quando orientado a “amaldiçoar a Deus” por sua esposa e
• Enfrentando a acusação de seus “amigos”.
Jó é apresentado como um homem de destacado caráter espiritual. Ele é descrito assim: “Aquele que era inculpável, reto, temia a Deus e se apartava do mal.”
Jó oferecia regularmente sacrifícios por seus filhos, para o caso de algum deles ter “amaldiçoado a Deus.”
Sucedia, pois, que, decorrido o turno de dias de seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se levantava de madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles; porque dizia Jó: Porventura pecaram meus filhos, e amaldiçoaram a Deus no seu coração. Assim fazia Jó continuamente. (Jó 1:5)
A ideia de “amaldiçoaram” (blasfêmia ou desafio a Deus) é uma interpretação um tanto superlativa para o que verdadeiramente a frase quer dizer na língua original hebraica.
A significação literal do termo se traduz como a bênção que acompanhava a partida de um visitante. O sentido é visto em Josué 22:6:
“Assim Josué os abençoou, e despediu-os; e foram-se às suas tendas”.
וַֽיְבָרְכֵ֖ם יְהֹושֻׁ֑עַ וַֽיְשַׁלְּחֵ֔ם וַיֵּלְכ֖וּ אֶל־אָהֳלֵיהֶֽם׃
וַֽיְבָרְכֵ֖ם (Waibareken = então abençoou)
A preocupação de Jó residia em que seus filhos pudessem vir a se apartar do Senhor no íntimo de seus corações, isto é, esquecerem-se de Deus e de Sua Santa presença em suas vidas diárias.
Que tipo de enfermidade assolou Jó?
Sugere-se que a doença que se abateu sobre Jó foi uma forma super severa de lepra, que também era classificada como elefantíase-dos-gregos. Algumas vezes também é denominada como lepra negra, pelo fato de tornar a cútis enegrecida.
Com a permissão de Deus, Satanás fustigou Jó com uma enfermidade impossível de identificar. Seja qual fosse a classificação dessa moléstia, os sintomas eram horríveis:
• Coceira forte (Jó 2:8)
• Insônia (Jó 3:13)
• Feridas e crostas supurantes (Jó 2:7)
• Pesadelos (Jó 7:13, 14)
• Mau hálito (Jó 19:17)
• Perda de peso (Jó 19:20)
• Calafrios e febre (Jó 21:6)
• Diarreia (Jó 30:27)
• Pele enegrecida (Jó 30:30).
A “cinza” mencionada em 2:8 é uma alusão ao lugar do lado de fora da cidade onde estrume e outros detritos seriam lançados e periodicamente queimados. É bem provável que Jó tenha escolhido seu lugar ali porque sua doença tornava-o indesejável na aldeia.
“E Jó tomou um caco para se raspar com ele; e estava assentado no meio da cinza.” (Jó 2:8)
A mulher e a sua orientação a amaldiçoar a Deus
“Então sua mulher lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre.” (Jó 2.9 ACF)
Uma vez mais, nos utilizando das ferramentas da hermenêutica, façamos algumas perguntas:
1. Foi isso que ela disse mesmo?
2. Como está escrita essa frase no texto hebraico bíblico original?
3. Qual a intenção por trás dessa afirmação?
Vamos ao texto em hebraico e transliterado:
A expressão:
וַתֹּ֤אמֶר לֹו֙ אִשְׁתֹּ֔ו עֹדְךָ֖ מַחֲזִ֣יק בְּתֻמָּתֶ֑ךָ בָּרֵ֥ךְ אֱלֹהִ֖ים וָמֻֽת
“Então, sua mulher lhe disse: ainda reténs a tua sinceridade? ABENÇOA a Deus e morre.” (Jó 2.9) (Ela manda seu marido abençoar e não amaldiçoar)
Segundo o Dicionário Strong a palavra בָּרֵ֥ךְ pode significar:
• Saúde, cumprimento, com uma invocação de bênção (mais forte que שׁלום): בך יברך ישׂראל contigo Israel abençoará (Gênesis 48:20) (E).
• Em partida Gênesis 24:60 (J) Gênesis 47:10 (P) 1 Reis 8:66. c. pelos mensageiros 1 Samuel 25:14; 2 Samuel 8:10; 1 Crônicas 18:10.
• Em gratidão Jó 31:20; Provérbios 30:11; Neemias 11:
• E saudação matinal Provérbios 27:14.
• Parabéns pela prosperidade Gênesis 12: 3 (J) Gênesis 27:29; Números 24: 9 (E) 1 Reis 1:47; Salmo 49:19; Salmo 62: 5. g.
• Em homenagem a 2 Samuel 14:22; Salmo 72:15. h.
• Com simpatia 2 Samuel 21: 3.
Abençoe, com o significado antitético maldição (Thes) da saudação em partir, dizendo adeus a, despedir-se; mas sim uma bênção exagerada.
A expressão: בָּרֵ֥ךְ (barekh) significa abençoa e não amaldiçoa. E por que nas mais variadas traduções os termos estão trocados?
Observemos algumas suposições:
Na cultura da época era improvável que o menor amaldiçoasse ou induzisse o maior a blasfemar. A mulher de Jó, não ousaria induzir seu marido a uma atitude tão vil, a saber que na cultura da época o homem era superior à mulher.
Outro detalhe interessante é que a ironia era uma linguagem normal. A esposa de Jó poderia ter dito “abençoa”, outrossim com tom irônico. (Técnica antitética = que constitui ou encerra antítese; antagônico, contrário.)
Outra possível sugestão diz que os escribas judeus, ao fazerem a cópia do livro de Jó (pois não se tem mais o original), podem ter trocado o termo “amaldiçoa” por “abençoa” visto que, pela reverência que tinham a Adonay, não poderiam transcrever o real sentimento da mulher de Jó falando contra o Eterno. Aplicamos aqui o eufemismo, ou seja, substituição de um termo rude por um mais brando.
Pelo contexto, apesar da palavra usada ser “abençoa (bendiga, exalta)”, o sentimento era de induzir Jó a falar contra o Eterno Deus. Era como se ela dissesse:
“Pra mim, basta! Não tenho mais razão para viver. Perdemos tudo, inclusive nossos filhos. Agora é com você. Deus não foi justo conosco! Diga adeus, bendiga a Deus e morra!”.
O que se depreende do texto é que a esposa de Jó não gozava dos mesmos adjetivos espirituais que o marido. Não se deve ser muito insensível com esta mulher, uma vez que estava psicologicamente abalada por uma sequência de traumas que se abateu sobre sua família.
Deve-se racionalizar que o conselho da esposa de Jó seja uma conclusão que chegara associando o sofrimento do esposo como causa de pecado, como seus amigos também o acusaram. Ela entende que o grande sofrimento de Jó só pode ter sido causado por um grande pecado que o separou de Deus.
Sendo assim “Amaldiçoar a Deus” não tornaria sua vida relacional com o Eterno pior, mas ao contrário, traria um grande alívio para o tormento e sofrimento temporal.
Mas o final da história de Jó é uma demonstração de que a confiança no Senhor é a certeza de mudanças e transformações. Jó revela que antes dos episódios de dor de sua vida seu conhecimento de Deus era terceirizado, entretanto, agora, ele podia contemplar a Glória do Pai com seus próprios olhos.
“Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos.” (Jó 42:5)
O dia da revelação de Deus será quando o diagnóstico médico for contrário a todas as expectativas.
O dia da manifestação de Deus em nossa vida será aquele em que todo mundo virar as costas para nós, inclusive a esposa ou o marido.
O dia que será o divisor de águas em nossa vida espiritual será, não no dia da festa e celebração, mas no dia do luto.
O dia que nossos olhos se abrirão para Deus será quando todos disserem estar certos e nós errados
Será naquele dia quando nosso ministério for desacreditado.
Vai ser no dia em que nos derem o cálice amargo de fel e termos que sorvê-lo até a última gota.
Mas alegremo-nos!
“Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra.” (Jó 19:25)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *